Não é de hoje

Não é de hoje que eu não deito no teu colo e te invento um soneto pra mostrar o quão importante você é pra mim. Não é de hoje que não emaranho meus dedos nos teus quando apenas quero que você fique. Não é de hoje que não seguro teu rosto com as mãos e olho bem dentro dos teus olhos pra dizer que te amo tanto. Que sempre te amei. Que sempre te quis. Que sempre deu. Que a gente sempre inventou. Que a nossa história é uma das mais bonitas.

Não é de hoje que a gente é desencontro, é tropeço. Não é de hoje que a gente não dá certo.

No entanto, também não é de hoje o quanto teus olhos brilham quando vêem os meus. Ou que há uma faísca visível quando a gente se toca.  Não é de hoje que nossos corpos se encaixam milimetricamente perfeitos em toda essa imperfeição. Não é de hoje que eu habito teus pensamentos mais indomáveis, tuas noites mal dormidas e o lençol da tua cama. Não é de hoje que eu te seguro quando você cai e que você está comigo quando eu mais preciso. Não é de hoje que aquele eu te amo engasgado vem saindo dos nossos peitos. Não é de hoje que a gente tropeça em palavras tentando apenas entender o óbvio. Que também somos hoje e que com certeza seremos amanhã. Sempre.

Escudo

Às seis horas da manhã ela abre os olhos. Só se espreguiça quando a mente está tranquila e talvez hoje não seja um desses dias. Levanta com os cabelos emaranhados, faz carinho no cachorro que dorme ainda na beira da cama, dá um beijo no menino que resolveu passar a noite na sua cama. De camisola longa, ela alimenta os três gatos que berram por atenção e se enroscam entre as suas pernas. “Hoje é apenas ontem”, sussurra.
Liga a chaleira, coloca duas colheres de pó de café na cafeteira manual, uma colher de adoçante, uma fatia de pão na torradeira, tira a manteiga, o leite e a mesmice na geladeira. Engole toda a sua rotina sem sentir o gosto.
De manhã não tem paciência pra se vestir mas durante o dia pensa que podia ter se arrumado um pouco melhor. Passa maquiagem, gosta dos batons vermelhos, faz parte do ritual de palhaço esconder as dores por baixo das cores.
Trabalha oito horas por dia. O mesmo trabalho, a mesma agenda, o mesmo escritório, quase as mesmas pessoas. Onde foram parar meus últimos sete anos?
Poucas coisas de verdade a encantam. Já faz um bom tempo que os dias não têm tanta graça. Mas ela tenta bravamente ser quem foi um dia, embora não consiga escapar de quem se é. Olha duas borboletas rodopiando pelo caminho de flores por onde caminha todas as manhãs, de onde vieram estas flores? Gosta de bichos, acima de qualquer outra criatura, então sempre procura o passarinho mais próximo, o gato que cruza a rua, o cachorro latindo por trás do portão. Dá bom dia aos bichos, aos velhinhos e às crianças, mas não gosta muito dos adultos.
Atravessa a avenida com centenas de pessoas – essa selva de pedra já me tirou todo o ar. Ela é bonita, graciosa, desperta olhares em meio à multidão. Mas quem a vê em sorrisos e batom vermelho não sabe de quantas lágrimas ela é feita. Quem repara no vestido colorido não sabe o quanto coçam suas cicatrizes ou quanto pulsam suas feridas abertas. Quem tenta seu coração, não faz ideia do trabalho que deu remendá-lo durante todos esses anos.
Ela caminha em passos fortes e decididos toda a sua fragilidade. Mas anda em frente, sorri para o mundo como quem está pronta para um novo dia que nunca chega. Quem a vê não sabe, mas ela é uma fortaleza de areia.

Hoje é mais uma oportunidade de ser feliz e talvez amanhã não seja apenas hoje.